26/02/2008

assim falei pro zaratustra - - zaratustra revisited parte VIII

E que seria de um abutre que aprendesse a cantar como um rouxinol? Acaso mesmo os ouvidos mais refinados não diriam “vede, eis uma ave de bom agouro; seu mavioso canto nos anuncia novos prados verdejantes” ? Porém, não poucos foram os que seguindo este canto fizeram-se de si mesmos carniça, e tiveram seus olhos arrancados, ao praguejarem contra a compaixão. Este abutre, meus amigos, este abutre quis se passar por águia! Porém ele próprio se delatava ao revelar que carregava uma cobra em volta do pescoço. Mas a ave altiva sabe que para serpentes não se deve dar a mão, mas tão somente as garras, e que é de bom gosto decepar suas cabeças, antes que se prendam na garganta do pastor. Ou ao menos extirpar-lhe as presas, pois uma vez cravadas, não adiantará apenas decapitar com uma mordida e cuspir fora: a flauta já não será mais doce, enquanto agir o veneno. Veneno!! Sim meus amigos, havia muito leite e mel, e aves canoras e estrelas bailarinas e montanhas e oceanos neste profeta; mas se sua solidão nos bosques era doce, o abandono nas cidades era venenoso e amargo. E não foi bom sinal anunciar que o homem é uma corda sobre um abismo, para em seguida ver despencar e se espatifar um artista, e iniciar sua jornada com um ouvinte e companheiro cadáver. Um vento forte para figos maduros deve soprar para figos maduros, e eventualmente brincar em pequenos redemoinhos de poeira na estrada, caso não seja época de figos; mas tornar-se tornado, e assim transtornado e com fúria cega sair devastando antigas tábuas e tudo mais o que encontrar pelo caminho, inclusive as figueiras, é também fome de vácuo. Pois mesmo as figueiras amaldiçoadas e ressecadas por não terem produzido frutos podem ainda brotar, e folhas são alimento doce o suficiente para as lagartas. Quê meus amigos?? Ríeis e desprezeis as lagartas e doutrinas sobre lagartas? Não é segredo em que elas se tornam, após seu breve casulo cavernoso; e se não admirais as flores, vossa virtude é a das pedras e dos seres inanimados.
Também houve precipitação ao anunciar que deus estava morto – talvez houvesse demasiada fome pela herança. Os deuses vivem morrendo e renascendo, seja após três dias ou após três eons, e talvez nisso consista sua imortalidade. Deus não morreu, apenas perdeu os sentidos! E bem sabemos que criar valores é criar sentidos. Adormeceu, o tal deus, e em seus sonhos o culto que aqueles que se denominavam seus fiéis lhe prestavam se apresenta como horrendo pesadelo.Em todo caso, seja sono profundo, seja morte cerebral, deixai que os mortos que enterrem seus mortos. Novos deuses já dançavam e cantavam, e também faziam a terra tremer. Cuidemos apenas para não passarmos a idolatrar gólems e outros monstros, e também nenhum asno. Uma nova geração de profetas, precisam os homens, e de uma nova geração de homens.
A compaixão pelos homens era tua última salvação, e não tentação, ó sábio dos adolescentes rebeldes!! Desprezando-a, a criança que te trouxeste o espelho foi embora, e te tornastes a imagem abominável que vistes. Quando estavas alegre, tuas bênçãos se derramavam espontaneamente, como um sol dourando remos; mas, talvez por rejeitares tão hebraicamente as mulheres, também tu, guerreiro e senhor de exércitos, também tu sucumbistes efeminadamente como a Eva, e rendeu-se aos encantos de serpentes. Foi tua serpente que te disse: “veja, há mais ventura em roubar do que em dar” – isso é mesquinhez e coisa de lojista! E tua criança, destemida, brincando de escandalizar e surpreender, e cuja sabedoria dizia muitas coisas apenas para escandalizar e surpreender, é a própria presa fácil para uma tal astúcia rastejante – e rapidamente a amargura tira todo doce da criança. Sim, tua serpente velhaca, que um dia te disse: “para ir mais longe, deves procurar outros caminhos; se outros sábios iniciaram subjugando, domando e matando serpentes e monstros marinhos, comece com um “kiss the snake on the tongue”!! Beijar a serpente na língua, e tornar-se demente e alcoólatra! E acreditar que com isso se cultuava um deus da música! De fato acontecem aí estardalhaços, mas nada mais avesso aos ares de montanhas e músicas de esferas. Na verdade a coisa mais próxima a isso que se viu em altas montanhas foram porcos jogando-se abismo abaixo; e como sabes, não foram poucos os que, tentando exorcizar demônios, jogaram-se com os porcos. O tal anão, o solene espírito do peso – que por sinal era teu parceiro, juntamente com a lua e aranhas, quando tinha tuas visões mais bizarras e absurdas – esse anão, que engano! Era um gigante. Havia todo um entre céus e terra em sua estatura, e agora sabemos que mesmo na esfera supra-lunar as estrelas bailarinas não estão livres desse espírito de peso. Zaratustra, como bom solitário que era, sempre falou consigo mesmo apenas, mas infelizmente não ouviu com ouvidos para ouvir seus conselhos ao jovem da árvore da montanha. Na verdade, foi apenas por querer ser mundano e consequentemente demasiado realista que ele não ousou declarar que tudo era um sonho, quando ouviu o sábio pregando as virtudes do sono, embora volta e meia exortava pelo despertar.
“Mas quem és tu”, talvez me dirão, “que imita a Zaratustra como um coxo a um dançarino, e que traz pregações que poderiam agradar até a velhas beatas?” Até os coxos podem dançar, e muitos só acreditam mesmo em coxos que saibam dançar; e ainda que sua dança não seja belo espetáculo, há coração em seus pés. Também das velhas beatas pode-se aprender muito, menos talvez sobre mulheres e chicotes; de qualquer modo, um bom desprezador despreza seu próprio desprezo, e com isso re-inventa a devoção. Porém, certamente Zaratustra era incomparavelmente melhor poeta e possuía grande sabedoria; não á toa foi também nosso mestre. Mas à tais mestres honra-se mais martelando-lhes um punhal no peito seco e duro de seus espantalhos do que lhes prestando cultos, e já a tempos é anunciado: “Zaratustra está morto! Zaratustra foi também apenas uma ponte, demasiado ponte, e já ficou para trás. É chegado o tempo de outras ilhas bem-aventuradas”.