02/09/2008

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I
Se vivo é porque a vida quer muito de mim e eu da vida, portanto, viver é uma exigência de compreensão do mundo e de mim mesmo. Portanto, aprendo-ensino-aprendo mais vivendo a experiência do aprender-ensinar. Na realidade, aprendo porque a vida ensina e ensino porque a minha própria vida me ensina a caminhar.
II
Quem faz as coisas do mundo somos cada um de nós. Se o vaso tem fundo é porque assim quisemos que ele fosse um objeto cabedor. E quisemos também que ele fosse bonito para o caso de não haver nada que coubesse nele. E transportamos a água para que nele coubesse a nossa sede. E colhemos flores para que nele coubesse os nossos sentimentos. O fundo do vaso que inventamos, quando está vazio cabe o ar que respiramos.
III
Também sonhamos quando dormimos, também sonhamos acordados. Também sonhamos, quando demasiado acordados, em dormir o sono dos justos. Também sonhamos, quando adormecidos pelas cruezas da vida, em acordar no paraíso. Também sonhamos em sonhar acordados, também sonhamos acordar de pesadelos. O sonho é sempre um sonho sonhado por alguém que acordou para a vida.
IV
Contra o esfriamento de nossos corações precisamos cardiovasculhá-lo e imprimir no sangue, talvez um tom de vinho mais forte, pois quanto mais velho melhor. Contra o entorpecimento dos sentimentos, trazer de volta a dor e o prazer de existir. Contra a morte em vida, a cicuta do despertar para a vida. Não fiquemos frios, mas façamos da frieza que adormece o coração, o princípio do calor da vitalidade.
V
Porque nós caminhamos numa imensa procissão: às vezes carregamos o andor, às vezes seguramos as velas, às vezes puxamos a ladainha, às vezes olhamos a saia da santa de pau-oco, às vezes miramos o manto da santa de gesso, às vezes rezamos, às vezes apenas seguimos, às vezes simplesmente vemos a procissão passar com irônico ceticismo.
VI
O conhecimento que passa não deixa pedra sobre pedra e constrói castelos. Traz muita coisa de novo que nos encontra quase sempre velhos. Reinventa o óbvio e repisa o inaudito. É feio e é bonito. É desejável e repulsivo. É coisa alguma e é infinito.
VII
“E é graças aos encontros inesperados dos velhos amigos que eu fico reconhecendo que o mundo é pequeno e, como sala-de-espera, ótimo, facílimo de aturar…” Guimarães Rosa
Segundo Calvino, “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.
E tenho dito. """

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